Este trabalho pretende compreender a Teoria dos atos de fala (AUSTIN, 1965) como uma das expressões que a língua permite, destacando a linguagem como forma de ação social. Utilizando de uma charge como exemplo base para a posterior análise dos conteúdos pragmáticos mencionados, discutir-se-á de que maneira a cultura, ou mais particularmente o (s) contexto (s) em que o enunciado é realizado, pode influenciar e/ou modificar o estado das coisas, bem como se um contexto cultural específico pode não validar um enunciado.
A teoria de Austin a respeito da performatividade da linguagem postula que, em situações específicas, atos linguísticos são capazes de produzir realidades. É o que acontece, por exemplo, quando um juiz profere uma sentença ou um ministro proclama a união matrimonial de duas pessoas. Esses atos linguísticos criam ou transformam a realidade, gerando consequências nos diversos campos da vida social. De acordo com Austin, para que a realidade enunciada pela linguagem se concretize, no entanto, é necessário que as condições sejam favoráveis. Então, é necessário que a pessoa que proclama a união seja alguém com autoridade para fazê-lo. Caso contrário, a realização do que é enunciado não se efetiva por se tratar da quebra de uma das “condições de felicidade” (denominação alcunhada por Austin) para que o enunciado performativo seja bem sucedido.
A partir desses pressupostos, Butler (2008) afirma que o gênero se produz por um processo performático semelhante ao que se aplica à linguagem na teoria austiniana. Em grande medida, a normatização social em torno do gênero é alicerçada pelo uso linguístico, o que pode ser visto como uma performance gerando outra. Assim, a forma como se usa a linguagem, criando um discurso coercitivo em relação ao gênero, é performática porque produz uma realidade, criando limites e regras para sua expressão. Butler afirma que o gênero começa a ser regulado desde que se anuncia que um bebê é “menino” ou “menina”, afinal, esse anúncio determina uma cadeia de atos que visam a moldar o gênero e a forma como o indivíduo viverá sua sexualidade e/ou identidade. Haverá controle sobre o tipo de roupas que a criança poderá usar, as cores, os brinquedos, etc.
Nota-se, no exemplo exposto (charge), uma das regras proposta por Searle (1979), denominada regra essencial, a qual estabelece que o enunciado, por convenção, vale como a própria intervenção social, entretanto não se pode afirmar que o enunciado do juiz de paz da charge em questão pode ter o mesmo efeito social e linguístico de um enunciado de consolidação de matrimônio entre pessoas de sexos diferentes, uma vez que se trata de uma questão cultural, isto é, o casamento entre pessoas de um mesmo sexo depende de políticas culturais e ideológicas de cada país, bem como de conceitos religiosos.
A partir das teorias de Searle acerca dos atos de linguagem, pode-se afirmar que, na charge tomada como item de análise neste trabalho, o juiz que firmaria o matrimônio, através de um ato de linguagem representativo, segundo Searle, ao não finalizar a sua enunciação, não assevera uma crença locucional quanto à verdade da sua proposição. E então, o que se depreende dessa hesitação por parte do juiz?
A impossibilidade de se nomear “eu vos declaro marido e marido” advém de um contraste de culturas que se chocam e da não possibilidade de haver um referente anterior que possa sustentar esse enunciado linguístico, ou seja, se se pensar em um país onde a união civil entre pessoas do mesmo sexo não é promulgada por lei, esse enunciado não terá validade, uma vez que a realização desse enunciado não é aceita legitimamente por lei, o que desautoriza sua efetivação.
O enunciado “eu vos declaro marido e mulher” funciona como o uso do vocabulário para dar a uma ideia uma forma de concretude, afetando a realidade social dos envolvidos no enunciado, porém o enunciado do exemplo em questão não intervém na realidade social dos envolvidos quando da inserção dos mesmos em um contexto em que o “casamento”, ou melhor, a união civil entre pessoas do mesmo sexo não é “permitida” por lei.
“Determinados aspectos de nossa realidade social só são criados por meio da representação dessa realidade e só assim adquirem validade e relevância social.” (KOCH, 2003). É diante da afirmação de Koch que se destaca a possibilidade do enunciado do juiz (personagem) ao firmar um matrimônio entre pessoas do mesmo sexo, de ao representar uma “nova” realidade social, darem a essa “nova” realidade, por meio do discurso, o status de validade e de relevância social.
Ademais, entendendo-se o contexto como um princípio regulador sociocultural, a enunciação ganha autonomia e legitimidade quando da construção de uma “nova” crença compartilhada, no caso da charge utilizada, o contexto deve fundamentar a enunciação do matrimônio entre pessoas do mesmo sexo.
Referências bibliográficas:
AUSTIN, John L. How to do Things with words. New York: Oxford University Press, 1965.
BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 2008.
KOCH, Ingedore Villaça. Linguística textual: uma entrevista com Ingedore Villaça Koch. Revista Virtual de Estudos da Linguagem – ReVEL. vol. 1, n. 1, agosto de 2003.
SEARLE, John R. Expression and meaning. Cambridge: Cambridge University Press, 1979.
Charge disponível em: <http://www.chargeonline.com.br/> Acesso em: 20 dez. 2018.
