Eu passei muito tempo
Aprendendo a beijar outros homens
Como beijo o meu pai
(…)
Diga a ele que não se aborreça comigo
Quando me vir beijar outro homem qualquer
Diga a ele que eu quando beijo um amigo
Estou certo de ser alguém como ele é
Alguém com sua força pra me proteger
Alguém com seu carinho pra me confortar
Alguém com olhos e coração bem abertos
Pra me compreender
Pai e Mãe – Gilberto Gil
Se você tivesse morrido com aquela doença, pai, seria muito mais fácil para mim. Difícil seria o dia de receber a notícia de que não havia mais esperanças. Difícil seria continuar por mais dois anos vivendo em meio às notícias de morte. Difícil seria olhar para minha mãe, sabendo que ela fazia de tudo pelo senhor desde os dezesseis anos, mas agora precisaria encontrar um outro chão. Seria difícil vê-la emagrecendo, vê-la olhando fotos como quem acha que a vida já passou, ver os seus olhos inchados das lágrimas semanas após o seu velório. Inclusive, seria difícil saber como me comportar nele. Como receber pêsames, como dar apertos de mão, como conversar.
Também deve ser difícil saber quando voltar a fazer as coisas normalmente depois que se morre um pai. Quando podemos voltar a rir? A beber cerveja? A fazer sexo? Em que momento tudo deixa de estar corrompido pela morte de um pai? Depois de um tempo, a vida voltaria à sua normalidade aparente. Um dia, então, eu contaria tudo à minha mãe, que, depois de mais alguns dias e algumas perguntas,
se acostumaria à ideia. Contaria à minha irmã, que seria indiferente. E assim a minha vida seguiria, sem um medo que me corrói. Tudo isso se eu tivesse ido ao seu velório.
Felizmente, você sobreviveu, pai. E eu não aprendi a ir ao seu velório, e nem a saber como todas essas coisas acontecem. Mas tem outras coisas que estou tentando aprender, como tentar lhe falar. São palavras tão simples, ainda assim pesam na boca quando lhe são direcionadas. Elas resumem anos da minha vida que o senhor nunca conheceu. Se você tivesse morrido com aquela doença, pai, você nunca teria me conhecido. Você poderia descansar no hospital com a imagem de um outro filho, que talvez seja mais próximo do filho que você desejava. Mas eu lhe digo, pai, que esse é um outro que não eu.
A verdade é que durante todos esses anos eu escondi grande parte dos meus afetos. Os homens com quem me relacionei. Os abraços, os carinhos, os cuidados. De amores que cuidaram de mim, como o senhor cuidou. Pessoas que você nunca soube que existiram. E junto desses afetos, estavam as roupas que eu colocava no fundo de um armário. Uma orelha furada que você nunca enxergou. Pingentes, bottons. Alguns amigos. As viagens que fiz e não pude contar. Pessoas que o senhor gostaria de conhecer, e que gostariam de conhecer o senhor, mas que, por uma acidente de percurso, não puderam, assim como o senhor só pôde conhecer esse meu outro, e não eu.
Pai, tem tanta coisa que eu gostaria de lhe contar.
Tenho um medo muito grande, mas também sei que preciso que você me conheça. O senhor não morreu, mas talvez agora eu vá morrer para você. E eu vou respeitar seu luto,
vou tolerar injúrias,
vou esperar como quem ama
que surja em você
uma vontade de me conhecer de novo
