O Diário de Expressão de Gênero é uma proposta de duas estudantes de Psicologia em Santa Maria – RS. Somos estagiárias do primeiro ambulatório trans do interior do estado, onde a população que está em processo de transição de gênero pode ter acesso à acompanhamento terapêutico com equipe multi de psicologia, clínico geral, psiquiatra e endocrinologista, além de acesso a terapia hormonal segura. Foi a partir da nossa experiência com a população trans, além de nossas experiências pessoais, que desenvolvemos este dispositivo artístico-terapêutico de autoconhecimento e auto-expressão, com o enfoque principal ao público infanto-juvenil.
Mas, como ele funciona? É simples. A cada dia, você marca no quadradinho a cor de referência do gênero que você mais expressou, ou nenhum gênero. A partir disso, irá se formar um desenho abstrato dos seus dias, da sua expressão. Desse modo, será possível compreender de forma visual e artística como você externaliza e sente seu gênero, pois ele opera assim, um espectro fluído, assim como as cores.

Adrianne Harris (2009), conceitua o gênero como uma construção a partir de relações com outros e por múltiplos discursos sociais, porém, ele não revela “uma essência pré-existente, mas sim um conjunto de práticas que constroem e produzem a ilusão de coerência e estabilidade”. Por isso, ao colocar no papel como o gênero se produz no dia-a-dia, pode-se evidenciar a sua instabilidade e o seu conjunto de práticas a partir do ambiente social no qual o sujeito está inserido.
Acreditamos na expressão de gênero como uma experiência singular, que quando encontra lugares seguros e oportunos para que ocorra de forma fluída, constitui a expressão e criatividade humana, neste sentido, Jappe (2023) sinaliza que “Uma infinidade de casos clínicos ilustram diversas expressões criativas de gênero em crianças, mostrando-nos que muito mais do que um arranjo sintomático, patológico, essas expressões são expressões de cura”. Com este dispositivo de auto registro, propomos então que a partir do contato com a expressão de gênero, o sujeito possa (se) criar e no fim de um período perceber que suas expressões durante os dias, formam uma criação maior, com formas e cores.
Reconhecemos a arte, bem como o escrever e o desenhar, entre tantas outras, como ferramentas promotoras tanto de auto reflexão, quanto de saúde mental e bem estar. A arte, ao longo dos anos, tem se mostrado como uma potente forma de elaborar questões internas, lidar com situações difíceis ou fortalecer estados de satisfação. Por este motivo, este dispositivo foi pensado como uma ferramenta artística-terapêutica, em que o auto-registro cotidiano mescla-se com a formação de uma arte abstrata ao longo do tempo.

Pensar-se e entrar em contato com nossas manifestações possibilitam o que comumente chamamos de “autoconhecimento”. Quando nos pensamos, é possível entender que a vida
não é estática, ela é circunstancial e por isso vislumbrar mudanças que desejamos. O que queremos dizer com isto é que o aspecto “gênero” não faz parte de uma essência, “que ninguém tem um gênero, fazemos gênero o tempo inteiro, somos fazedores de gênero” (Bento, 2014, p. 479).
Veja, não estou falando em acabar com a ideia de gênero, mas se eu não tenho obrigação de corresponder a um estereótipo de gênero, e se eu posso “brincar de gênero”, qual o problema? É isso o que as crianças fazem: brincam de gênero e sofrem toda a força das normas para capturá-las. (Bento, 2014, p. 483)
Refletimos que, ao propor a vivência de gênero registrada cotidianamente através do diário, encontramos uma forma de se repensar, o que auxilia no processo de desprendimento de estereotipos rígidos, causadores de adoecimento. “Brincar de gênero”, de forma artística e registrada, pode ser um dos caminhos à auto reflexão, bem estar e autonomia.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DIAS, D. M.. (2014). Brincar de gênero, uma conversa com Berenice Bento. Cadernos Pagu, (43), 475–497.
HARRIS, A. (2012). Gender as soft assembly. Routledge. p. 342 – 354.
JAPPE, M. (2023) Amabilidade de Viagem – Dissidências de gênero e criatividade. Miolo Seminários Mineiros. p. 205 – 217.
